quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Não sou branca

Quando eu estava na faculdade de Jornalismo, havia um aluno peruano em outro curso da Comunicação Social. Era um doce de pessoa. E muito inteligente, muito capaz, havia ganhado bolsa para estudar lá, uma universidade particular brasileira, bem-conceituada. Fizemos uma amizade bonita no período em que estudamos juntos. Certo dia, ele me contou que sofreu discriminação por parte de um colega de sala. O outro colega havia dito: “vocês vêm para cá estudar de graça e tirar espaço nosso no mercado”. Doeu. Em mim e, principalmente, nele. Não tenho mais contato com esse amigo, mas imagino que lhe deve ter doído também ver as cenas de racismo do seu povo contra o jogador negro brasileiro, ontem, em Huancayo, no Peru. Ele já esteve do outro lado. Ele sabe que isso corta como punhal.
Essa foi uma das vezes em que eu vi a dimensão do preconceito, da discriminação bem perto de mim. É terrível, é sujo, é golpe sujo. É arma de quem não tem com o que lutar. De quem não tem dignidade para ir para um embate em condições de igualdade. Então, é simples, me coloco acima pelo critério cor-pele-cabelo. Imundo isso.
Sou considerada “branca” pela sociedade, mas mal sabem os que me consideram branca que, sim, tenho ascendência europeia – italiana e portuguesa –, mas também indígena. Pouco sei da minha história materna, mas minha mãe nos conta que uma de nossas bisavós foi pega no laço. Era uma índia. Também tenho ascendência negra. Meu avô materno era, como diz minha mãe, “negoaço”, uma forma antiga de dizer branco do cabelo crespo.
Com toda essa mistura, me consideram branca porque tenho pele clara, cabelos lisos, nariz afilado. Não, eu não sou branca. Eu sou resultado de uma mistura bonita, mas conflituosa, que nem sempre ocorreu com concordância de todas as partes. Eu tenho um passado indígena, no qual muitas mulheres sofreram abusos de brancos, de negros e de outros índios. Assim como indígenas peruanas devem ter sofrido. Além disso, no meu passado indígena, homens índios foram massacrados covardemente e ainda hoje são humilhados e tratados como inferiores ou “coitadinhos” em várias partes do mundo.
Eu tenho um passado negro, no qual mulheres também foram abusadas por senhores brancos e por reis negros e por tantos outros. Homens foram abusados, escravizados, humilhados, vendidos. E ainda hoje lutam por igualdade, por sua beleza ser admirada, por sua competência ser reconhecida, por não ter sempre o sufixo “negro” em tudo. Tenho um passado europeu, de pobres italianos e portugueses que, desesperançados em seus países, vieram para cá em busca de uma vida mais promissora e acabaram encontrando condições de trabalho similares à escravidão, com a diferença de uma baixa remuneração.
Por ser considerada branca, não posso dizer que sofri preconceito alguma vez na vida. O máximo que já sofri foi um bullying na escola, por não ser rica ou por ter piolho. Doeu? Sim, mas nunca como deve doer em um negro ser discriminado pela cor. Uma vez até já me discriminaram ao contrário: “você não é brasileira! Você não é negra...”. Ouvi isso dentro de um trem na Itália. Fiquei enojada. Doeu, mas não como deve doer em um negro ser discriminado pela cor. Repito isso para frisar que eu NUNCA vou saber o que é o preconceito racial, eu posso chegar perto dessa dor, mas nunca vou saber o que ela é realmente. Nem eu nem nenhum de meus amigos e familiares considerados brancos. Portanto, não é admissível que alguém “branco” tente minimizar o preconceito sofrido por um negro. Não é admissível. Não minimizem, por favor.
Branco, negro, índio, de que biotipo for, o passado da humanidade é marcado por vitórias, derrotas e lutas. Muito há do que se envergonhar, de todas as partes. Mas podemos construir uma história diferente, da qual não teremos vergonha no futuro. O começo para essa nova história é agir com igualdade, com irmandade, sem se sobrepor ao outro, sem sujar as mãos com a imundície do preconceito, da discriminação. É direcionar um olhar humano ao que é humano. É direcionar amor aos gestos, às pessoas, ao seu irmão de todas as cores. Que nossas lutas de agora e do futuro sejam em pé de igualdade, sem a mancha indelével do racismo. Irmãos peruanos, lamento pela parte de vocês que os envergonhou e que envergonhou o mundo. Tinga e demais jogadores negros do mundo, sua cor é linda e sua história é de orgulho. Vocês são vencedores.

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