quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Por que não falamos delas?*

Vi uma menina no meio do Carnaval. Outra no cinema. Vi andando na rua. Sentada em um café. Vi em vários lugares, passeando alheia, como se o ar fosse um peso, o tempo, um martírio, a vida, um castigo. Vi uma menina que tentava se esconder, que andava sozinha. Que puxava a roupa para baixo, para o lado, que preferia sempre ficar sentada, no fundo da sala ou em qualquer canto invisível. Vi uma menina que não sorria. Que parecia chorar em cada olhar, que parecia rabugenta para quem não entende que o nome daquela expressão é tristeza.

Vejo meninas assim, todos os dias, em todos os lugares, cada vez mais escondidas, como se precisassem não ser vistas, ou se quisessem não ser. Essas meninas já vistas não têm saído da minha cabeça. Desde que li o post, não tem um mês, acredito, de uma conhecida no Facebook, falando sobre assuntos de que não falamos, do nosso silêncio tão omisso. Em certo momento, ela faz a pergunta: “vamos falar da solidão da mulher gorda?”. Direta e francamente, como um cruzado que vai no queixo, um direto no nariz ou um chute no estômago, se preferirem.

E por que a questão é especificamente sobre a mulher gorda? Mas e por que não sobre a mulher gorda? É da solidão da mulher gorda, porque ela rasga como punhal, porque a gente sabe que não é invenção e não é mentira, porque a gente a vê mais que qualquer coisa que é disfarçada na sociedade. Porque a gente, arrogantemente, sente dó da mulher gorda e da solidão dela. Porque é a mulher o principal alvo do ideal estético que é, todos sabem, a magreza ou a definição muscular. Tem cobrança para homem? Tem, mas não como é para a mulher, não vamos nos enganar.

Não parei mais de pensar na pergunta. “Vamos falar da solidão da mulher gorda?”. Como um martelo na cabeça. Vamos falar? Quem tem coragem de falar? Quem vai enfrentar isso? Quem vai assumir que tenta ignorar isso? Quem vai admitir que realmente não pensa nisso porque não é um problema seu? Porque é assim que a maioria de nós pensa. Quando o problema não nos afeta diretamente, não olhamos para ele com a preocupação de buscar uma solução ou de amenizá-lo.

Depois de ler a pergunta dessa minha conhecida, eu não consegui parar de tentar dimensionar a dor da solidão da mulher gorda. Até a expressão mulher gorda já carrega uma dor. Uma solidão, como se sinônimos fossem. O peso que a mulher gorda carrega, mais que corporal, passa a ser sentimental. O peso de ter de existir em um mundo que não quer que você exista, não do jeito que você é.

O peso de existir sozinha, de apenas escutar os papos das amigas que contam que saíram para a balada, conheceram alguém, beijaram na boca, transaram, receberam uma ligação. De ouvir que as amigas estão sendo desejadas aonde quer que vão, e ela, não. O peso de não ter o que contar. De ouvir em silêncio, melancolicamente, querendo se empolgar com a história da amiga, escondendo mais no fundo ainda a dor. Até o peso de ser esquecida – intencionalmente ou não – para passeios com as amigas, porque a “mulher gorda” não se encaixaria em certos programas ou não se sentiria à vontade neles. Será?

Porque a vida da mulher gorda é viver num esconderijo. Privando o outro de saber da fragilidade que isso tudo envolve, da raiva que aparece dia sim, dia não, da revolta, de tantos sentimentos que surgem e que são difíceis de nomear, mas que existem, como uma força que faz o peso aumentar a cada dia. Uma âncora. Sim, uma âncora.

E ainda ter de lidar com julgamentos de quem acha que a mulher gorda está gorda porque não tem força de vontade. Ter força de vontade motivada pelo quê? Mulher gorda e solitária, você ainda tem de ser um ser dotado de força de vontade sobre-humana neste mundo que te rejeita, se não, pobre de você, será um ser ainda pior. Acomodada. Fraca. Compulsiva. No mínimo. E essa ainda é outra questão, que envolve o preconceito e o julgamento contra a pessoa gorda em geral.

Não é a questão principal desta discussão, que quer se prender à solidão da mulher gorda. Que eu, mesmo tentando nos últimos dias, não consegui dimensionar, mesmo sendo mulher e não sendo magra, convivendo com mulher e ouvindo mulher. Ainda assim, não consigo parar de pensar na questão: “vamos falar da solidão da mulher gorda?”. Vamos falar, pelo menos falar, encarar que existe e que somos todos responsáveis por ela, essa solidão. Se haverá uma solução (que não seja exigir que a mulher gorda emagreça)? Não sei. Poucas vezes fiquei tão sem resposta.

(*) Artigo que escrevi para o portal Tudo BH (www.tudobh.com.br).

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