quinta-feira, 23 de junho de 2016

Da mudez traumática por fatos atravessantes

Não é a melhor solução, mas a gente se cala. Se cala porque não consegue falar, como naquelas situações que deixam as pessoas paralisadas pelo fato de ser algo muito retumbante. Não é do feitio da maioria de nós, mas temos nos calado. Nunca, porém, pela falta do que dizer ou por não nos importarmos. É o contrário. Qual é o nome disso? Aquele estado que dá na pessoa quando ela tem muito o que dizer, mas, em oposição, fica muda? São turbilhões, pensamentos atravessantes, indignações latentes, machucadoras de alma, de coração, de cabeça, de visão, de sentidos.
Pois sim, acho que estamos assim. A gente nunca pode falar pelo todo, fala por si com a ingênua pretensão de encontrar eco, de esbarrar num comum. Mas somos comuns entre nós. Comuns na dor que sentimos e em outros sentimentos coincidentes, embora particulares. Porque o mais impossível é que a maioria esteja indolor à dor que se derrama dentro de nós feito bilhões de litros de lama que entupiram nosso rio e condensaram nosso mar.
E ainda não é só – palavra que nem cabe neste texto de dor, porque, se há algo que não é em tudo isso, esse algo é o só. Não foram só 20 e poucas pessoas que morreram/desapareceram, não é só um povoado de só 500 pessoas, não foram só algumas casas, não foram só algumas cidades mineiras e capixabas... Não, a palavra não é só. O além, esse, sim, junta-se mais ao todo de terror que nos invade.
Além da monstruosidade matadora de gente, natureza, história, outros matadores nos visitaram recentemente, para aumentar o estado de choque, de incompreensão e, lamentavelmente, de impotência. Paris, tristeza também atravessante, apesar de termos sido julgados por nos ocupar da tragédia da cidade-luz, do além-mar, porque a dor, a comoção e a solidariedade têm de ter limite geográfico.
Julgamentos ajudam no processo de emudecimento de seres humanos. Nunca li isso em lugar nenhum, não houve pesquisa que me informou. Mas é o que sinto quando penso em falar e prevejo um dedo, um olhar de julgamento. Creio, esse é dos sentimentos particulares que são coincidentes entre as pessoas. Então, a gente se cala também por medo dos julgamentos. Mas não devia, não devia. A gente aprende um dia?
Passa um, vem outro; passa outro, vem um. E, no momento, o que faz calar é a morte de cinco jovens no Rio. Não eram jovens qualquer. Eram jovens negros. Não eram jovens negros quaisquer. Eram jovens negros da periferia. É Zona Norte. Eu, Zona Norte, sei como a Zona Norte é vista até por quem tem os mais nobres sentimentos. “É meio longe, né?”. Ser longe não é somente uma questão de distância em quilômetros. Revela uma distância social e, preconceituosamente, cultural, que quem é da ZN vai percorrer uma vida para tentar encurtar e talvez nunca vai conseguir. Você pode até ter dinheiro e ser bem-educado, mas, se for da Zona Norte, já perde ponto. Pontos que, às vezes, valem vidas, corações.
Os cinco corações que os jovens perderam de uma vez no jogo da vida não se apagaram por algum vacilo na estratégia. Ou melhor, talvez tenha sido. Quem dá o direito a cinco negros da Zona Norte de ocupar um carro e sair por aí numa noite de sábado? Ninguém, né? O direito de ir e vir, aquele da Constituição Federal do Brasil, não é para todos, cara-pálida. Aliás, vale muito para os cara-pálidas, já os de cara marrom, aí, tem de ver.
A velha história de estar no lugar errado com a pessoa errada. Porque vai que você esbarra com alguém dotado da autoridade de usar arma de fogo e da autoridade de “estado”. Pode ser que essa pessoa esteja, por assim dizer, a fim de... Matar. Então, melhor que seja um alvo que vai dar menos trabalho, alguém que, pela cor e pelo local onde vive, já chega com a pecha de “bandido”. Um bandido a mais, um a menos... Quem vai se importar?
Só que não é assim. Nós nos importamos (surpresa?). Podemos até estar calados momentaneamente, paralisados com tanta atrocidade de tantos lados, mas nos importamos. Se não vai ter tanto espaço em grande mídia, vai ficar replicando por muito tempo em outros locais (salve a internet!), como ainda ecoa – ao contrário do que se possa ter imaginado – o clamor por justiça no caso covarde, covarde, covarde do menino Eduardo. E como há quase um mês ecoam, diariamente e de forma multiplicada, a indignação e as cobranças com relação aos bilhões de lama. A mudez traumática, diz a ciência, segundo algo que já li em algum lugar, é passageira. Depois disso, falamos, falamos, falamos. Nos aguarde, nos aguente.

(*) Escrito em 1º de dezembro de 2015, após uma sequência de traumas.

Se um rato, um ninho

Uma das primeiras vezes em que eu tive a audácia de desafiar minha brava mãe (brava na época, hoje ela é mansinha) foi quando eu tinha uns 12 para 13 anos. Com cabelão, como hoje, quis cortar. Minha mãe jamais iria permitir. Fui lá escondido e cortei "chanel". Não sei por qual motivo, já que Inês era morta, eu decidi jogar o cabelo fora, para esconder a prova do crime. Perto de casa mesmo, onde é o casarão mais antigo da cidade - transformado recentemente em unidade de educação infantil -, havia um lote vago atrás. Era ali. Respirei, juntei forças, girei o braço e atirei o mais longe que eu pude aquele rabo de cavalo, certa de que, assim, não seria punida pela desobediência.
(Lembro que cortei meu cabelo com uma senhora que atendia em um salão em casa, em um bairro ao lado do meu. No futuro, acabei me tornando cliente dela. Dona Conceição. Certo dia desse futuro hoje já passado, à tarde, quando bati a campainha para pedir corte mais uma vez, um adolescente mais jovem que eu atendeu. E me contou, então, que não haveria corte nunca mais. Dona Conceição havia falecido, de um jeito que a gente só sabe que existe, mas nunca crê de fato. Foi atropelada por uma bicicleta, bateu a cabeça no meio-fio, teve traumatismo craniano. Fiquei triste e voltei pra casa sem cortar o cabelo naquela tarde chuvosa. Eu gostava da dona Conceição. Era uma senhora de uns 45 a 50 anos, paciente, me dava conversa e sempre me atendia solicitamente.)
Quando joguei o cabelo no lote vago era noite. Foi um triunfo para mim. Mal sabia eu... O problema com minha mãe foi menos grave que o que eu imaginava que seria. Ela chamou a minha atenção, mas não bateu nem nada. Eu a desobedeci pouco tempo depois de novo, furando as orelhas. Só tomei outra advertência. Acho que minha mãe já estava começando a entrar na fase mais mansa dela quando eu decidi me "rebelar".
Bom, passado o aperto com a minha mãe, o que me atormentou dias e noites seguidos a partir daquele dia foi a conversa de não sei quem para mim quando soube que eu joguei o cabelo no lote vago. "Se um rato pegar o seu cabelo e fizer ninho, você vai ficar doida". Meu Deus, que tormento foram essas palavras. Quis ir atrás do cabelo, mas o que eu ia fazer com ele? Como ia entrar no lote? Qual seria o melhor horário? E se o rato já tivesse pegado? Acabei não indo atrás do cabelo, mas sofri muitos dias, não dormi direito e, acho, me deixei em estado de observação, para ver se havia ou não ficado doida. Talvez na primeira chuva eu tenha agradecido, poderia ter espalhado um pouco o cabelo. Se o cabelo estivesse espalhado, não deveria valer a tal profecia. Se fiquei doida ou não? Prefiro uma resposta menos maniqueísta. Ou: "estou em estado de observação".