quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O roubo da empregada

É só pensar em uma escadinha de amigas. Cinco. Como não me lembro direito da idade de cada uma, a gente supõe que era assim: 9, 10, 11, 12 e 14. Se não é, para esta história, fica sendo. Só para ajudar a visualizar a cena. As cinco eram conversadas, dessas meninas que abrem o bico fácil com qualquer pessoa na rua.
Pois bem, as cinco fizeram amizade com a moça da padaria e com a empregada de uma vizinha da rua de cima. O que tem uma coisa com a outra? Só esperar um pouquinho. Conversa vai, conversa vem, o que as cinco amigas descobriram? Que a empregada da vizinha da rua de cima não estava satisfeita no trabalho, sofria maus-tratos, ela contava. Era mocinha nova, do interior, que sabe-se lá como veio parar em Belo Horizonte para morar e trabalhar na casa da tal patroa. Nesses esquemas herdeiros daqueles tempos da escravidão. Do outro lado, descobriram que a moça da padaria, de quem elas gostavam muito, queria o quê? Isso mesmo: uma empregada, também para morar na casa dela. Bingo! Juntaram dois e dois e decidiram fazer a união das duas.
A questão era como. Pensaram, planejaram uma data, uma hora e uma fuga estratégica. E, assim pensado, no momento decidido e acordado com ambos os lados, foram executar o plano. Era noite de não sei que dia em qual mês e ano. Bateram campainha na casa da vizinha da rua de cima. A própria atendeu. “Somos amigas de fulana, moramos na rua de baixo. Queremos conversar com ela um pouquinho”. Chegou a empregada. Deram um tempinho, até a patroa subir para a casa e se esquecer um pouco das seis. Então, fecharam o portão e saíram correndo, puxando a mocinha pela mão. Ainda ouço o tá-tá-tá das sandálias de plástico no asfalto, sinto a euforia, o medo e alegria daquele roubo, ou seria furto? Rapto talvez... A patroa chegou até o portão e viu as seis correndo. Acho que gritou alguma coisa, mas, aí, já era. Estavam longe e correndo muito.
Em um beco próximo, as cinco amigas encontraram a moça da padaria, que pegou a empregada nova pela mão e deu no pé com ela, parece que havia um carro na parada, ou seria ônibus? Daí em diante, não se sabe o que aconteceu com uma e outra e a outra que ficou sem a empregada. As cinco amigas ficaram bem orgulhosas de si, com fé de terem feito a melhor ação de todas as suas vidas (sem pensarem que a troca foi de seis por meia dúzia). E certas de terem realizado o roubo do século.

Dedicado à Gi, a amiga que participou do roubo do século. Eu, minha irmã, Ni, a amiga Gir (irmã da Gi) e a amiga Tiane fomos as outras participantes da ação. Do plano onde está, Gi, você deve estar rindo dessas lembranças. Querida, você está para sempre com gente.

Legenda por idade:
9 = eu
10 = Gi
11 = Ni
12 = Gir
14 = Tiane

O marido

À espera do segundo ônibus que me levaria para a praia de Gaibu, que fica a quase duas horas de Boa Viagem, alguns personagens ajudavam a fazer o tempo passar. O homem do suco de cana, que trocou a engenharia pelo seu próprio engenho, o taxista que “aluga” o cartão do Vem, que é o passe dos coletivos de Recife, e a moça esperta que compra a garapa do amigo engenheiro e dono de engenho. Todos ficam, então, “arretados” com o homem que passa rente ao meio-fio, à frente de uma mulher, e diz, em alto e bom som, com voz grave e sem nenhuma gentileza: “bora, mulher! Anda!”. A moça esperta: “ah, se marido meu fala assim comigo...”. E os dois homens que estavam no ponto acham absurdo o trato, afirmam que afirmam que a mulher é que tem de gritar com o homem, mandar no homem. Essas coisas.

A história acabaria assim se o tal marido não voltasse em minutos para comprar um lanche para a mulher, que continuava andando atrás dele. “Ela tá com fome. Dê um desse aí pra ela”. A mulher, de quem eu não ouvi a voz, só um miadinho bem baixo e indecifrável, se senta, come a coxinha, fuma um cigarro, e o marido só assiste a isso, depois de pagar o lanche. O ônibus chega, a fila se forma. Eu fico por último, esperando todo mundo se acomodar para entrar. O marido para na porta do ônibus e faz um bloqueio para que as mulheres entrem primeiro. Olha pra mim, no final da fila, e diz: “você não vem, não, moça?”. Eu digo que sim, mas que estava esperando a fila. Ele: “não, pode entrar, eles esperam”. Ok, entrei. E eles esperaram mesmo, sem reclamar.

Chegamos a Gaibu. Cada um vai pra seu lado. Sento em uma cadeira bem na frente da praia, peço um arrumadinho e um suco. Não tem, vem Coca-Cola mesmo. Quando estou terminando, o marido e a mulher que mia chegam. Sentam-se à minha frente. Ele logo para um vendedor de camarão, compra uma porção, que vem num potinho pequeno de plástico. Ele diz: “não, me dê esse outro aí”. Queria aquele maior, que é quase um pratinho mais fundo. Tira tudo do potinho menor, vira no maior, que o vendedor lhe deu, calado, sem reclamar, e diz: “pronto, agora vai ficar tudo bonitinho, arrumadinho”, com toda satisfação.

Continuo sem ouvir a voz da mulher, somente miados bem distantes. O marido pergunta que cerveja ela quer. Ao ouvir a resposta, pede uma Skol – imagino que tenha sido o que ela falou. Depois, vira-se já para outro vendedor, de caldinho dessa vez. Pede um. Custa R$ 5, mas ele diz que vai pagar R$ 2. O vendedor aceita. Não só isso. O marido pede, ainda, pimenta, azeite e molho de alho. Coloca no caldinho – que também é para a mulher – e na porção de camarão. O vendedor só olha e não reclama.

Pronto, comidas postas à mesa e temperadas, harmonizadas com cerveja. Vendedores afastados, uma vista de encher os olhos e o barulho do mar. Hora de namorar. Ele coloca camarão na boca dela. Ela repete o gesto. E, entre um camarão e outro, trocam beijinhos na boca. Continuo sem saber qual era a voz dela e, cansada de espiar o casal e tentar entender aquele homem, levanto, pago o arrumadinho e a Coca, vou embora. Sei só que eu, a mulher, a fila de homens e os três vendedores, todos nós obedecemos ao marido. E ainda não sei o porquê.