quinta-feira, 5 de março de 2015

Um certo José Rico*

Demorou um tempo para eu aceitar que o Milionário era o José Rico e o José Rico era o Milionário. Foi acontecendo não com pouca dificuldade. É porque o José Rico tinha cara de Milionário. Quanto ao Milionário mesmo, não tenho tanto a dizer, porque era o José Rico – que, pra mim, deveria ser Milionário – o cara que me chamava a atenção.

Eu gostava de olhar para aquela figura “exótica”. Um cabelo grande simulando ser mal cortado (ou era mal cortado mesmo?), costeletas (!!!), barba que tampava o rosto inteiro, correntes douradas no pescoço, anéis dourados nos dedos, óculos escuros (muito mais que Ray-Ban), roupas coloridas. E, pra completar tudo, uma unhazinha maior pintada de vermelho. Gente, a unha do mindinho. Era uma diversão para uma criança olhar aquilo. “Credo!”. Claro que era isso que eu dizia, mas, no fundo, sendo profundamente atraída pelo bizarro, como costuma ocorrer quando nos deparamos com o bizarro.

Nunca tomei muito conhecimento do Milionário, que era bem mais discreto. Usava apenas um chapéu. Sem barba, sem costeletas, sem a unhazinha vermelha, com os cabelos bem cortadinhos e roupas mais discretas. Acho que eu tinha um pouco de mágoa dele, por ter “roubado” a alcunha do meu amigo mais destacado, seu parceiro de dupla. Ele, sim, tinha cara de Milionário. Era ostentação pura. Cara de gente rica, ou recém-rica, como falam por aí. Que tem tudo para mostrar, que chama a atenção, que não quer passar batido em lugar nenhum. Gente milionária, sabe?

Isso tudo, pra mim, era o principal, quando deveria ser o pano de fundo do contexto que me levou a conhecer o Milionário. Digo, José Rico. Era a música. Sertaneja. Um pouco mais “moderninha” que a caipira de Tonico e Tinoco ou Cascatinha e Inhana. Os dois cantores “do dinheiro”, que passaram a ser chamados de “As gargantas de ouro do Brasil”, traziam uma versão mais atualizada da música caipira.

Era o sertanejo romântico. Foram precursores nisso. Um estilo que foi se firmando e é um dos mais fortes no Brasil atualmente. Os dois falavam de amor quase sempre e da estrada da vida, que leva a gente para onde nem sabemos. Aliás, estrada era outra paixão embutida nas canções de M e JR, ídolos também dos caminhoneiros, presentes em músicas alegres, apaixonadas ou tristes, como a “Sonho de um caminhoneiro”.

Claro que a segunda voz é importante em uma dupla – embora existam umas que não são nem nunca serão notadas. Mas tem primeira voz que é diferente, que chama a atenção de uma forma especial. E a do José Rico era dessas. Vozeirão bonito, firme e natural, mesmo com o passar dos anos – o que faz aumentar a admiração por ele diante de tantas primeiras vozes forçadas por aí. Ainda juntava a tudo isso o fato de ele ser gente boa, né? Simpático, carismático, sorridente.

Como se fosse pouco, não era só a voz dele o admirável na carreira da dupla, que vendeu 35 milhões de discos. A música era boa, boa mesmo. Bonita, poéticas, simples e com sentimento. Eram poesias, como a de “Sentimento sertanejo”, deles, a preferida do meu pai:

“Um sentimento que me faz sofrer

Trago guardado em meu coração

Depois de tantas juras de amor

Eu recebi a sua ingratidão”

Talvez seja difícil hoje um jovem reconhecer a beleza dessas canções, porque é o “sentimento sertanejo” vai mais e mais ficando para trás, se tornando arcaico e conhecido mais somente entre os mais velhos. Mesmo sabendo que o “sertanejês” é uma das matrizes da nossa cultura, muitos de nós passamos a vida sem dar mais atenção a isso, às vezes, até ignorando a existência dele. Mas o conselho é: se um dia você quiser ouvir algo diferente mas genuinamente brasileiro (mesmo com a influência da country music em muitos casos) e estiver com tempo sobrando e coração aberto, pegue um Milionário e José Rico para ouvir.

Pode ser que não te provoque efeito nenhum, mas pode ser que você seja tocado pela emoção das músicas da dupla e, a partir de então, se torne mais um encantado pelo sertanejo “de raiz”, como dizem. Que comece a pensar em noites do interior do Brasil, tão solitárias, embrenhadas no meio do mato, mas cheias do sentimento que músicas do tipo levam. Ou até de festas do interior, que a trilha sonora prestigia as nossas duplas. Ou, ainda, na incerteza da estrada sem fim que caminhoneiros do país inteiro enfrentam todos os dias, faça chuva, faça sol.

Não digo que vá ouvir essas músicas todos os dias ou de forma preferencial. Mas vai ouvir com respeito, com afeto, uma doçura que brota lá dentro da alma, talvez até com um pouco de comoção. E vai pensar em pessoas como José Rico, que foi conhecer outras estradas tão precocemente, mas que levou a música dele de forma tão digna por mais de 40 anos. Todo o meu respeito, José Rico. Espero que você tenha tido tempo de saber o quanto você foi importante na representação do coração brasileiro. Sinto muito pela perda, Milionário.

(*) Artigo que escrevi para o portal Tudo BH (www.tudobh.com.br).