segunda-feira, 27 de abril de 2015

Adeus no dia do fim*

Um set list enorme, quase infinito, se o infinito pudesse existir caso nós não o limitássemos tanto. Até reflexões desse tipo cabiam naquele dia, em que a palavra fim ecoava em paredes, cadeiras, vozes, olhares, cumprimentos e, principalmente, sons. Esquisito pensar que era a última vez de tudo. Fazer o mesmo de sempre, coisa que já entediou tanto e, naquela última vez, chegava com a vontade “infinita” de eternizar. Como eternizar? Congelar o momento? Não deixar acontecer? Segurar com as mãos o tempo e os fatos que vão passando e ignorando vontades? Evitar um fim?

Ele tinha chegado e era naquele dia. Tantos recados já vindos por causa das ondas. Não dava para pensar em cada um, só nos que tinham se apropriado dos pensamentos do dono dos pensamentos. Casos até de vidas mudadas por causa de uma música. Ou vidas aconchegadas por uma trilha entre um caminho e outro. Uma vez, algumas vezes ou todos os dias da semana. Tanto poder apenas com alguns botões à frente e um conhecimento sobre música que, de razoável, passou a bom e depois a bem amplo. E, assim, sobre corações.

Como poderia o dia do fim ser inesquecível e infinito? Tinha de ser um dia marcante. Principalmente para quem estava sentado ali há tantos anos, fazendo o mesmo. Muitas vezes o que saiu daquela mesa de operação, tão mecânica e impessoal, era o reflexo perfeito ou quase de quem estava atrás dela. Despedidas, lutos, encontros, nascimento dos filhos, separações, reconciliações e conquistas práticas: carro novo, casa, cursos, andar de bicicleta. Não só a vida de quem ouvia era marcada a cada dia de trilha. Atrasada constatação.

Ainda que último, o dia do fim era de trabalho. Uma programação tinha de sair daquela mesa. Um bom dia, uma boa tarde, uma boa noite. Ainda era preciso conversar com quem estava do outro lado, com a voz bonita. Não deixar perceber o embargo, a tristeza que está chegando já há alguns dias. Esse era o mantra. Porque música é sentimento, a voz é uma aproximação. No dia do fim, a chegada ao pé do ouvido ouvinte tinha de ser a melhor. A melhor daqueles mais de dez anos ao lado de tanta gente anônima, bordando histórias, rotinas e desejos.

Pensar nunca foi tão difícil. Era como impossível diante de tantas informações que assumiam o controle da mente, do corpo, das mãos e dos ouvidos. Dessa vez, era o próprio o coração partido. Como viver a partir daqui? Era custoso o exercício de receber de mãos abertas o mundo vazio que agora estava mais perto que na semana anterior.

Minutos passando, botão no automático. Ainda sem colocar a marca no dia do fim. Pés para o alto na mesa, pernas cruzadas, olhar perdido mirando uma salinha solitária e fechada na maioria das vezes, onde o tédio já passou e ficou por horas. E tudo o que fosse vontade agora era de nunca mais sair daquele lugar.

Por fim, uma conclusão. De talvez não ser a melhor, mas ser a própria trilha. Era a única forma de não ser esquecido, de deixar uma marca no dia do fim. Seleção de músicas muito bem-vindas na vida de quem estava por trás da mesa, mesmo quem nem todas o fossem para a rádio. Computador, pesquisa, memória, celular, minha playlist. Tudo foi sendo desengavetado na velocidade do som. Não da luz. Quem inventou o conceito de brega?

De todo esse esforço pessoal e tecnológico, foi saindo uma lista duvidosa. Os ouvintes jamais iriam se esquecer do dia do fim. “Despedida”, do Robertão, “Pra dizer adeus”, dos Titãs, “Um dia, um adeus”, do Guilherme Arantes... Um pouco de música internacional... Ah, Elvis, claro. “Always on my mind”. Elton John, “Goodbye yellow brick road”. Beatles... “Hello, goodbye”. E Bon Jovi: “Never say goodbye”. Deu uma parada na busca e olhou o elenco incrível que tinha juntado. Era um sonho, uma utopia. Hoje era o seu dia. Ao ouvir uma a uma, foi impossível segurar os olhos e a respiração, mãe da fala. Já não era hora de falar, mas de fechar o microfone pela última vez e apertar o play. “Não aprendi a dizer adeus”.

(*) À rádio Guarani, que me acompanhou em dias felizes e em outros nem tanto. Minha história tem você.

Foto: Creative Commons