Não sei o que deu na Folha de São Paulo, que tentou mexer em um dos maiores traumas dos brasileiros da forma mais irresponsável possível. Muitos devem ter acompanhado (e estar acompanhando) a polêmica que o jornal criou ao usar o termo "ditabranda" ao se referir à ditadura militar brasileira (1964-1985), em artigo publicado em fevereiro. Dá para imaginar isso? Uma ditadura violenta, repressiva e arbitrária ser considera branda por um dos maiores veículos de comunicação do país? Cadê a responsabilidade exigida dos órgãos de comunicação? Talvez a Folha tenha pensado que pode agir como o Super-Homem e mudar o curso da história. Mas errou feio. Não é assim. Há fatos, há mortes, há documentos, há testemunhas e há muitas dores que nenhum veículo de comunicação ou qualquer outro instrumento - a exemplo das anistias - pode descartar, remediar ou ignorar. Um veículo pode ser grande, ter influência e poder, mas jamais será um deus ou semideus.
Para se mexer em assuntos mal resolvidos - e a ditadura brasileira é um assunto ainda mal resolvido -, é preciso cuidado. A Folha não teve. Se o critério é comparar o regime que vigorou no Brasil com o que está em vigor na Venezuela de Hugo Chávez, o erro é gritante. É erro histórico, de avaliação e editorial. São situações diferentes, momentos diferentes e regimes diferentes. Não dá para olhar com os olhos de hoje o passado. Por que não avalia, critica e comenta a situação da Venezuela a partir do que está acontecendo lá? Será que a Folha não pensou que, ao minimizar o caso brasileiro para engrandecer o problema na Venezuela, estaria atentando contra a história de seu próprio país?
Não vivi a ditadura brasileira. Quando ela acabou, eu ainda era uma pequenina, que estava começando a viver e não compreendia a política. Mas vivi os efeitos dela e me lembro muito bem - porque comecei a me interessar pela política bem cedo. Lembro-me da morte de Tancredo e do Governo Sarney, deplorável para o Brasil. Lembro-me perfeitamente da inflação exorbitante, que colocava em pânico os pais de família, e me lembro, também, do congelamento dos preços, da fuga das mercadorias das prateleiras etc.
Apesar de todo o perrengue que o Brasil passou pós-ditadura, acredito que tudo, todo o desespero foi muito melhor que o desespero das mães que não tinham notícias dos filhos ou que viam os filhos chegarem em casa, após meses de sumiço, todo estraçalhados e traumatizados. Ou o desespero da dor de quem ia para as celas do Dops e companhia para sofrer todo o tipo de tortura e humilhação. Ou de quem nunca mais teve notícia de seus companheiros. Ou de quem até hoje não conseguiu enterrar um ente querido.
Não sei o que, para a Folha, é o contrário de branda se, para o jornal, toda a violência física e psicológica da ditadura brasileira não foi agressiva, dolorosa, forte, dura e outros nomes que se enquadrariam no contexto. Lamento, muito, que um jornal, seja ele qual for, tenha tratado a questão dessa maneira. E, aqui, nem cabe a discussão que tenho visto por aí que de que o jornal é de direita e anti-esquerda. Não é isso. O que faltou foi sensibilidade. Não existe, em qualquer lugar do mundo, jornalismo sem sensibilidade. Não é jornalismo. Folha, Super-Homem só existe na ficção. O curso da história não se muda. Mais respeito à história e à memória de seu país, por gentileza.
*** A foto acima é do corpo do jornalista Vladimir Herzog, da TV Cultura de São Paulo, morto em 1975, dentro de uma cela do DOI-Codi de São Paulo, um dos órgãos repressores da ditadura militar brasileira. A polícia, na época, afirmou que ele havia se matado. Mas, claro, a farsa foi desmentida. Uma pessoa não consegue se enforcar com os joelhos flexionados, de uma altura tão baixa. Nem se ela quiser...
Ainda bem que na Internet existe espaço para pessoas como nós. Se dependermos apenas dos veículos oficiais de comunicação, teremos sempre que seguir "essa gente careta e covarde".
ResponderExcluirCláudia, bom dia!
ResponderExcluirHá pouco, através de sua página do orkut, eu tomei conhecimento sobre a criação deste espaço para troca de idéias! Conhecedor de sua inteligência e sensibilidade, tenho certeza de que não faltarão assuntos diversos e interessantes, dos mais simples aos mais pontuais, para serem compartilhados conosco.
Por motivos bastante pessoais e conhecidos por você, não evocarei a ditaDURA em si! Estrearei com um comentário a respeito dos desmandos da mídia "porcorativa" brasileira.
Infelizmente, não é de hoje que o editorial do Estado de São Paulo, de O Globo, do Folha de São Paulo, do Jornal do Brasil, de outros grandes jornais e revistas e de outros meios de comunicação primam pela ignorância, pela irresponsabilidade, pelo distanciamento da verdade.
Essa tentativa de destruição da memória realizada por estes meios, pelo menos para mim, não é novidade. Ainda hoje, tentam demonstrar que foram censurados; mas é reconhecida a posição confortável que a maioria destes ocupou no processo de recrudescimento da desinformação durante os "anos de chumbo". Onde está o aprofundamento do debate a respeito de fatos correlatos tão recentes, tais como: a homenagem ao conhecido repressor, torturador e assassino mais temido da época, Sérgio Paranhos Fleury, então delegado do DOPS de São Paulo, que foi tratado como herói nacional em missa; ou o arquivamento do processo contra o coronel e, também, torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo; ou a "dificuldade" para abertura dos arquivos da ditadura e para revisão da Lei de Anistia. Parece que a "Tradição, Família e Propriedade" ronda-nos todos os dias sob as mais diversas formas...
Cláudia, meu amor, receba meus parabéns e desejos de boa sorte pela sua missão e pela sua iniciativa. Saiba que acredito que a independência, a penetração e a influência dos blogs são de grande valia à democracia da (in)formação cidadã! O senador Eduardo Azeredo, o delegado da Internet, não deve concordar muito comigo...
(Postado pelo amigo Luiz Fernando Estevam)
Ótimo e informativo seu comentário, meu querido e inteligente Luiz Fernando. A forma como os tribunais, a imprensa e as instituições isentam os criminosos da ditadura militar também me provoca arrepios. Como assim e até quando? Como podem tentar anular o que todos fizeram? Será insensibilidade, corporativismo, injustiça, o que será? Para nós, é indignação. Não sei o que podemos fazer, mas, ao menos protestar, ao menos em nossos blogs, que têm alcance limitado, mas existem e mostram parte de pensamentos pouco mais justos. Vamos ver agora no que vai dar essa história do Delegardo Azeredo. Vamos ver! Bjos carregados de saudade para você, meu querido e amado amigo.
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