domingo, 1 de março de 2009

Síndrome de Super-Homem



Não sei o que deu na Folha de São Paulo, que tentou mexer em um dos maiores traumas dos brasileiros da forma mais irresponsável possível. Muitos devem ter acompanhado (e estar acompanhando) a polêmica que o jornal criou ao usar o termo "ditabranda" ao se referir à ditadura militar brasileira (1964-1985), em artigo publicado em fevereiro. Dá para imaginar isso? Uma ditadura violenta, repressiva e arbitrária ser considera branda por um dos maiores veículos de comunicação do país? Cadê a responsabilidade exigida dos órgãos de comunicação? Talvez a Folha tenha pensado que pode agir como o Super-Homem e mudar o curso da história. Mas errou feio. Não é assim. Há fatos, há mortes, há documentos, há testemunhas e há muitas dores que nenhum veículo de comunicação ou qualquer outro instrumento - a exemplo das anistias - pode descartar, remediar ou ignorar. Um veículo pode ser grande, ter influência e poder, mas jamais será um deus ou semideus.


Para se mexer em assuntos mal resolvidos - e a ditadura brasileira é um assunto ainda mal resolvido -, é preciso cuidado. A Folha não teve. Se o critério é comparar o regime que vigorou no Brasil com o que está em vigor na Venezuela de Hugo Chávez, o erro é gritante. É erro histórico, de avaliação e editorial. São situações diferentes, momentos diferentes e regimes diferentes. Não dá para olhar com os olhos de hoje o passado. Por que não avalia, critica e comenta a situação da Venezuela a partir do que está acontecendo lá? Será que a Folha não pensou que, ao minimizar o caso brasileiro para engrandecer o problema na Venezuela, estaria atentando contra a história de seu próprio país?


Não vivi a ditadura brasileira. Quando ela acabou, eu ainda era uma pequenina, que estava começando a viver e não compreendia a política. Mas vivi os efeitos dela e me lembro muito bem - porque comecei a me interessar pela política bem cedo. Lembro-me da morte de Tancredo e do Governo Sarney, deplorável para o Brasil. Lembro-me perfeitamente da inflação exorbitante, que colocava em pânico os pais de família, e me lembro, também, do congelamento dos preços, da fuga das mercadorias das prateleiras etc.


Apesar de todo o perrengue que o Brasil passou pós-ditadura, acredito que tudo, todo o desespero foi muito melhor que o desespero das mães que não tinham notícias dos filhos ou que viam os filhos chegarem em casa, após meses de sumiço, todo estraçalhados e traumatizados. Ou o desespero da dor de quem ia para as celas do Dops e companhia para sofrer todo o tipo de tortura e humilhação. Ou de quem nunca mais teve notícia de seus companheiros. Ou de quem até hoje não conseguiu enterrar um ente querido.


Não sei o que, para a Folha, é o contrário de branda se, para o jornal, toda a violência física e psicológica da ditadura brasileira não foi agressiva, dolorosa, forte, dura e outros nomes que se enquadrariam no contexto. Lamento, muito, que um jornal, seja ele qual for, tenha tratado a questão dessa maneira. E, aqui, nem cabe a discussão que tenho visto por aí que de que o jornal é de direita e anti-esquerda. Não é isso. O que faltou foi sensibilidade. Não existe, em qualquer lugar do mundo, jornalismo sem sensibilidade. Não é jornalismo. Folha, Super-Homem só existe na ficção. O curso da história não se muda. Mais respeito à história e à memória de seu país, por gentileza.


*** A foto acima é do corpo do jornalista Vladimir Herzog, da TV Cultura de São Paulo, morto em 1975, dentro de uma cela do DOI-Codi de São Paulo, um dos órgãos repressores da ditadura militar brasileira. A polícia, na época, afirmou que ele havia se matado. Mas, claro, a farsa foi desmentida. Uma pessoa não consegue se enforcar com os joelhos flexionados, de uma altura tão baixa. Nem se ela quiser...

3 comentários:

  1. Ainda bem que na Internet existe espaço para pessoas como nós. Se dependermos apenas dos veículos oficiais de comunicação, teremos sempre que seguir "essa gente careta e covarde".

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  2. Cláudia, bom dia!

    Há pouco, através de sua página do orkut, eu tomei conhecimento sobre a criação deste espaço para troca de idéias! Conhecedor de sua inteligência e sensibilidade, tenho certeza de que não faltarão assuntos diversos e interessantes, dos mais simples aos mais pontuais, para serem compartilhados conosco.

    Por motivos bastante pessoais e conhecidos por você, não evocarei a ditaDURA em si! Estrearei com um comentário a respeito dos desmandos da mídia "porcorativa" brasileira.

    Infelizmente, não é de hoje que o editorial do Estado de São Paulo, de O Globo, do Folha de São Paulo, do Jornal do Brasil, de outros grandes jornais e revistas e de outros meios de comunicação primam pela ignorância, pela irresponsabilidade, pelo distanciamento da verdade.

    Essa tentativa de destruição da memória realizada por estes meios, pelo menos para mim, não é novidade. Ainda hoje, tentam demonstrar que foram censurados; mas é reconhecida a posição confortável que a maioria destes ocupou no processo de recrudescimento da desinformação durante os "anos de chumbo". Onde está o aprofundamento do debate a respeito de fatos correlatos tão recentes, tais como: a homenagem ao conhecido repressor, torturador e assassino mais temido da época, Sérgio Paranhos Fleury, então delegado do DOPS de São Paulo, que foi tratado como herói nacional em missa; ou o arquivamento do processo contra o coronel e, também, torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo; ou a "dificuldade" para abertura dos arquivos da ditadura e para revisão da Lei de Anistia. Parece que a "Tradição, Família e Propriedade" ronda-nos todos os dias sob as mais diversas formas...

    Cláudia, meu amor, receba meus parabéns e desejos de boa sorte pela sua missão e pela sua iniciativa. Saiba que acredito que a independência, a penetração e a influência dos blogs são de grande valia à democracia da (in)formação cidadã! O senador Eduardo Azeredo, o delegado da Internet, não deve concordar muito comigo...

    (Postado pelo amigo Luiz Fernando Estevam)

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  3. Ótimo e informativo seu comentário, meu querido e inteligente Luiz Fernando. A forma como os tribunais, a imprensa e as instituições isentam os criminosos da ditadura militar também me provoca arrepios. Como assim e até quando? Como podem tentar anular o que todos fizeram? Será insensibilidade, corporativismo, injustiça, o que será? Para nós, é indignação. Não sei o que podemos fazer, mas, ao menos protestar, ao menos em nossos blogs, que têm alcance limitado, mas existem e mostram parte de pensamentos pouco mais justos. Vamos ver agora no que vai dar essa história do Delegardo Azeredo. Vamos ver! Bjos carregados de saudade para você, meu querido e amado amigo.

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